As terras de Mértola recuperam a tradição do cultivo da vinha e mostram que este pedaço aos pés do rio Guadiana tem o que é preciso para fazer vinhos de raça, onde branco e o tinto Discórdia estão entre os pioneiros
O grande rio do sul de Portugal foi terra de vinho desde tempos longínquos. Numa prospeção recente ao longo do rio Guadiana, entre Mértola e Pomarão, o professor Antero Martins e o grupo que o acompanhou encontraram abundantes videiras velhas, desgarradas, a comum vitis vinifera. O especialista na área da genética de plantas e presidente da Associação Portuguesa para a Diversidade da Videira (PORVID) ia na busca de sinais da presença das videiras silvestres, outra estirpe muito anterior à encontrada, a tal vitis vinifera que é cultivada na Europa desde há 10 mil anos e que terá tido presença significativa no passado ao longo do rio Guadiana. A descoberta de grainhas de uvas em escavações arqueológicas na vila reforça esta tese. A referência está documentada e integra-se no trabalho que o arqueólogo Cláudio Torres realizou em Mértola nas últimas décadas, sendo que os vestígios de uva foram encontrados numa casa da época almóada (séculos XII-XIII).
É esta memória cultural que Paulo Alho, um dos promotores do projeto de vinhos Discórdia, quer recuperar e compreender. Natural de Sesimbra, o empresário da área da construção civil costumava ir caçar para a região, com a família e amigos, acabando por adquirir em 2007 a Herdade Vale de Évora, situada a poucos quilómetros da bonita vila de Mértola, no baixo Alentejo. Percebe-se o fascínio pelo lugar: a propriedade de 550 hectares está integrada no Parque Natural do Vale do Guadiana, beneficiando de uma paisagem de grande beleza, marcada por terrenos de ondulação generosa, uma vegetação autóctone e o rio Guadiana que a serpenteia.
A sedução vínica veio a par e, em 2009, a família de Paulo Alho investe na plantação de 10 hectares de vinha, dando início ao projeto Discórdia – assim batizado depois de animada discussão à mesa e por impossibilidade do uso da palavra Évora que integra o nome da herdade.
Já no final de 2016, juntou-se ao projeto, como sócio, Vítor Pereira, um amigo da família e também engenheiro civil e gestor ligado igualmente ao setor da construção civil. A gestão corrente do projeto é também assegurada por Miguel, filho de Paulo Alho, sendo ainda sócio o outro filho, Paulo Teodoro.
Francisco Mata, técnico superior de viticultura na ATEVA – Associação Técnica dos Viticultores do Alentejo, responsável pelo sector de qualidade da associação, orientou os trabalhos de plantação da vinha, talhões de quatro castas tintas (Touriga Franca, Touriga Nacional, Alicante Bouchet e Syrah) e três de brancas (Arinto, Verdelho e Antão Vaz). É uma vinha aberta sobre a paisagem selvagem e couto de caça turística, de perdizes autóctones a javalis, rodeada de significativas áreas de reflorestação com azinheiras, pinheiros mansos e medronheiros. A Herdade Vale de Évora é aliás um dos últimos redutos de caça selvagem do Alentejo e do país.
O enólogo Diogo Lopes assumiu a adega e toda a condição do terroir: as vinhas do Discórdia estão plantadas numa das regiões mais quentes do país, terra árida e agreste, de solos xistosos. O uso da tecnologia humana apoia e potencia o valor natural, como a rega em momentos cruciais, mas a vinha vive ali no limite e numa luta pela sobrevivência, resultando dessa condição “fruta deliciosa e bastante concentrada”, explica Diogo Lopes.
“Não queremos mascarar esta condição”, assume o enólogo, porque é o que “diferencia e que define o selo de origem Mértola”. Envolvido noutros projetos vínicos, nomeadamente com o enólogo Anselmo Mendes, Diogo Lopes reconhece que o perfil dos vinhos Discórdia “pode sair fora do padrão tradicional do Alentejo”, de vinhos “mais redondos e polidos”. Neste projeto da Herdade Vale de Évora, temos “vinhos de raça, muito autênticos e com carácter, que mantêm uma aresta típica da região”, explica, e ainda assim apresentam-se com “uma frescura notável” que aparece de forma natural. A proximidade ao rio Guadiana permite igualmente manter um nível de acidez médio muito bom, conseguindo-se um invejável equilíbrio de conjunto, conclui.
Com uma produtividade relativamente baixa (entre 4 e 4,5 toneladas por hectare), a vinha do Discórdia precisa ainda de tempo para ganhar estrutura e mostrar todo o seu potencial. É essa descoberta que técnicos e promotores estão agora a fazer, procurando a consistência que permita alargar o portefólio. Um grande reserva tinto de 2013, edição limitada, aguarda já em garrafa depois de ter estagiado dois anos em barricas de carvalho e está em projeto a edição de monovarietais das castas Syrah e Touriga Nacional, para mostrar o comportamento e carácter destas castas naquele lugar.
Consolidado o projeto dos vinhos, a equipa Discórdia quer desenvolver o enoturismo, construindo uma pequena unidade de alojamento rural e restaurante.
A preocupação central das duas vindimas dos vinhos em prova foi vinificar as uvas tendo em conta o equilíbrio de todos os seus componentes. Seguiu-se um controlo apertado do estado de maturação das uvas, com recolhas de amostras várias vezes na semana, durante o período mais crítico. Com muito potencial para evoluir em garrafa, os vinhos Discórdia são especialmente indicados para quem gosta de uma boa surpresa.
Discórdia branco 2015 – Grande frescura aromática com notas tropicais e citrinas. Final refrescante e intenso. Vindima manual. Seleção de cachos, desengace total seguido de ligeira prensagem. Decantação a frio, seguida de fermentação em cubas de inox com temperatura controlada (15-12 Cº). Batonnage com borras finas durante 3 meses.
Discórdia tinto 2014 – Boa intensidade aromática com notas de fruta silvestre, ligeiro floral e um toque de esteva. Final intenso com taninos gulosos. Vindima manual. Seleção de cachos, desengace total. Fermentação a temperatura controlada em cubas de inox. Estágio em cubas de inox.
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