… cedo ingressei numa adega em períodos de vindima

paulo coutinho g

Paulo Coutinho, natural de Celeirós do Douro, licenciado em Enologia

Como e quando despertou para o mundo do vinho?
A minha entrada no mundo dos vinhos foi algo de muito natural, fruto da vivência quotidiana numa aldeia vinhateira, como é o caso de Celeirós do Douro. A minha família não fugiu à regra e, como tantas outras no Douro, pelo facto de ser produtora de uvas lançou-se a produzir o seu próprio vinho de consumo e o seu vinho “tratado”! Este é o nome que é dado ao vinho fortificado ou vinho do Porto, que muito se faz por esse Douro! De modo que tal vivência acabou por me tornar um viciado ou um habitué das vindimas, das rogas, das lagaradas, bem como do trabalho de enchimento de barricas ao longo do ano. E posso mesmo dizer que lá em casa ouvi muitas vezes, desde miúdo, e sempre que alguém nos visitava lá em casa… “Paulo vai ao vinho!”.

Qual o seu percurso profissional nesta área?
Tirando a experiência familiar, cedo ingressei numa adega em períodos de vindima. Tinha apenas 16 anos quando fiz a minha primeira vindima numa adega a sério! Comecei como qualquer profissional… pelo básico. Limpezas!

Não foram umas limpezas de água e vassoura, mas sim de raspador na mão a tirar sarro de uma cuba de cimento! Desde essa altura que faço vindimas em Setembro. E foi quando tive que escolher o que seguir na universidade que, em conversa com enólogos numa dessas vindimas, tudo ficou claro! “Não tens nada de hesitar, vais para Enologia!”, disse a minha “madrinha” de profissão! 

Passei ainda pelo Curso Superior de Enologia, o tal curso baseado no curso de Bordéus, e apanhei a transição para a Licenciatura em Enologia que acabei em 1993. Passei um ano, por entre rimas de garrafas de espumante nas Caves da Raposeira (ainda em período de estágio para a conclusão da licenciatura), e assim que finalizei, passei uns três meses da Primavera de 1994 num pequeno produtor na Régua. Mas foi a 4 de Agosto de 1994 que completei o primeiro dia de uma longa caminhada na construção de um ambicioso projeto que foi o arranque de um projeto familiar, que a família Mansilha Branco decidiu construir na minha aldeia Natal. E daí nasceu a Quinta do Portal e foi quando ambos, eu e Quinta do Portal, começámos a crescer juntos! Juntei-me assim à família que acredita no Douro, nas suas gentes, nas suas riquezas.

Qual foi o seu maior desafio desde que teve início a sua atividade nesta área? 
Desafios tive muitos. Mas talvez o mais desafiante e até marcante ocorreu em 2006! Antes de partir para férias no início de Agosto, deixei todo o equipamento da antiga adega no exterior. Tudo desmontado à espera do equipamento novo que seria montado para a vindima de 2006. Numa reunião no dia 20 de Agosto, marcada no local com a empresa metalúrgica, para avaliar os atrasos e plano para entregas, fui confrontado com a proposta de voltar a montar tudo, porque não seria possível montar o novo equipamento a tempo da vindima que se avizinhava. Não aceitei e exigi que fosse sendo montada a nova adega enquanto vinificava. Foi uma vindima num autêntico estaleiro, eram uvas a entrar e gente a montar cubas e a soldar, enquanto discutia com pessoal da adega, tinha os empregados da metalúrgica ao lado a colocar questões, enquanto definia com os montadores do sistema de frio o caminho a percorrer com a tubagem, tinha o pessoal técnico com amostras para definir passos a seguir… Foi uma vindima muito agitada, mas muito compensadora! Foi uma grande vindima, e ao contrário do que se verificou em termos gerais no Douro, 2006 acabou por ser um grande ano para a Quinta do Portal, quer em brancos (Portal Branco 2006 excecional) quer em tintos (Grande Reserva tinto 2006 bem classificado quer em concursos quer em ratings).

O que acha que deveria ser alterado na postura de alguns dos restaurantes e hotéis relativamente ao serviço de vinhos?
Eu acho que deveríamos separar mesmo as duas categorias. Compreendo que esperariam uma resposta relativa às suas margens aplicadas aos vinhos, mas deixo essa questão já discutida várias vezes. Penso que, hoje, grande parte dos consumidores sabe avaliar pelo serviço e conhecimento sobre vinho, se determinado restaurante ou hotel pode praticar a margem que aplica.

Alerto antes para uma questão que tem que ver com a qualidade dos copos, do serviço e da prestação de um bom serviço de vinho. Se durante muito tempo os hotéis tinham um serviço mais regular, quer de copos, quer de gerir e adaptar o serviço ao vinho, aconselhamento e interpretação do gosto do cliente, hoje vejo que os hotéis perderam o ritmo e os restaurantes estão uns níveis acima. Claro que existem exceções, obviamente e ainda bem. Não quero ser injusto para excelentes exemplos de hotéis, nem benevolente com muitos restaurantes. Gostaria antes de alertar para o facto de existirem muitos hotéis que necessitam urgentemente de investir ou recuperar o tempo perdido! Recuperar os bons sommeliers e chefes de sala, que foram perdendo para os restaurantes, e investirem no correcto serviço de vinho. Fica, ainda, o meu aplauso para as excelentes garrafeiras que se vêem hoje em alguns hotéis e restaurantes. Garrafeiras em lugares-chave da sala, que permitem desde logo a percepção do cuidado que a casa tem.

Mas também já fui a sítios que tinham uma bela decoração de caixas de madeira na parede, e depois a lista não coincide com as marcas que se vê estampadas na parede! Não fica bem

Que história, pelo absurdo e/ou interessante, tem desde que iniciou a sua atividade? 
Tenho uma que tenho contado a alguns grupos no decorrer de provas de degustação, quando me questionam sobre a dificuldade que têm em reconhecer aromas nos vinhos. Foi uma história que me foi contada precisamente numa degustação por um elemento da mesa e que demonstra a dificuldade que existe em padronizar sentimentos ou percepções. Um homem viajou até à aldeia de nascença e enquanto visitava um amigo da família, foram-lhe oferecidos uns morangos bastante aromáticos que lhe lembraram logo a infância. Pensou logo no seu filho mais novo que adorava morangos e ansioso foi logo prepará-los quando chegou a casa. Chamou o filho e ofereceu-lhe os frutos com grande ansiedade para ver o que o filho faria com uns morangos da terra onde nasceu, que tinham um aroma fantástico!

Acontece que o filho torceu o nariz ao começar a comer e colocou logo de lado os morangos que o pai tão carinhosamente lhe preparou. “Então filho, tu adoras morangos… tu nunca comeste morangos tão aromáticos! Estes sim… fazem-me lembrar os morangos que eu comia quando tinha a tua idade! Porquê?! Diz-me!”. “Sabem a champô… Não gosto!”, disse o miúdo.

Aquilo que o pai tinha na memória como sendo aroma de morangos, tinha o filho mais presente como sendo o aroma de champô de morango que usava para lavar o cabelo! Os morangos que ele tanto gostava não tinham aroma de morango! Eram neutros! É uma história que serve de alerta, pois as crianças que em breve estarão a provar vinhos, não usarão a mesma linguagem que hoje ainda se usa para descrever vinhos. Provavelmente, teremos de dizer que o vinho Rosé tem um exuberante aroma de champô de morango!

Qual o vinho que teve oportunidade de provar e que mais o surpreendeu e de que país? 
Não tenho um vinho de outros países que me tenha surpreendido ao ponto de o enumerar aqui! Claro que provei grandes vinhos, e não poderei esquecer a primeira vez que provei um Sauvignon da Nova Zelândia, ou tintos de África do Sul, ou brancos velhos de Sancerre, ou brancos e tintos de produção biológica de Bordéus. Mas enumerar como surpreendentes, penso que não, pois penso que para isso teria de os conhecer na sua origem e história e para isso nunca tive a oportunidade de os conhecer convenientemente.

De modo que por conhecer melhor quem está por detrás dos vinhos, a casa, família ou enólogo, bem como algum historial dessas marcas, vou-me surpreendendo com alguma produção nacional. E aí, claro, poderia enumerar alguns bons exemplos, mas não querendo correr o risco de não enumerar alguns deles, fico-me por aqui!

Qual o restaurante que lhe proporcionou uma experiência inesquecível e porquê?
Apesar de ter tido muitas boas experiências na restauração portuguesa, terei de falar num restaurante que hoje ocupa a posição 3 do top10 Mundial desde 2011. Mugaritz! Um restaurante de Errenteria (San Sebastian – Espanha) e que tem duas estrelas Michelin!

Decorria talvez o ano de 2002! A caminho de Bordéus, parámos antes de entrar em França para almoçar! Ao ver a lista, vimos num menu de degustação na parte das sobremesas, um Moscatel Reserva 1996 da Quinta do Portal. Não percebemos como é que ele tinha chegado até lá, mas escolhemos esse menu. A história conta com a participação do na altura muito jovem chef Andovi Aduriz. Terminando o almoço que estava divinal, pedimos para cumprimentar o chef. Disseram-nos que teríamos de esperar um pouco, que o chef já nos iria receber. Achámos estranho. E lá continuamos à espera dele.

Até que, por fim, já nós a desesperar para seguir viagem, vieram-nos dizer que o chef estava à nossa espera na cozinha! Foi espetacular! Abriram-nos a porta de duas folhas, e lá estava o chef com um sub-chefe de cada lado, pronto para nos cumprimentar no meio da cozinha, enquanto o resto da equipa trabalhava por detrás. Foi algo de extraordinário, de uma simplicidade mas ao mesmo tempo de uma atitude de louvar. O chef apresentava-se como uma equipa e não como uma individualidade. Fantástico!